terça-feira, 3 de junho de 2014

A REVELAÇÃO GERAL E A ESPECIAL

A Bíblia atesta uma dupla revelação de Deus: uma revelação na natureza que nos cerca, na consciência humana, e no governo providencial do mundo; e uma revelação encarnada na Bíblia como palavra de Deus. A testa a primeira em passagens como as seguintes; “Os céus manifestam a Glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia e uma noite revela conhecimento à outra noite” Salmo 19.1, 2. “Contudo, não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos dos céus chuvas e estações frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e de alegria” Atos 14.17. “porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim como o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas”, Romanos 1.19, 20. Da revelação especial temos abundante prova no Velho e no Novo testamento. “O Senhor advertiu a Israel e a Judá por intermédio de todos os profetas e de todos os videntes, dizendo: Voltai-vos dos vossos maus caminhos, e guardai os meus mandamentos e os meus estatutos, segundo toda a lei que prescrevi a vossos pais e que vos enviei por intermédio dos meus servos, os profetas” 2 Reis 17.13. “manifestou os seus caminhos a Moisés, e os seus feitos, aos filhos de Israel” Salmo 103.7. “ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigênito, que está no seio do pai, é quem o revelou” João 1.18. “havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras aos pais , nos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo filho” Hebreus 1.1, 2. Com base nestes dados escriturísticos, tornou-se costume falar da revelação natural e sobrenatural. A distinção assim aplicada à idéia de revelação é, primariamente, uma distinção baseada na maneira pela qual ela é comunicada ao homem; mas, no transcurso da história, também tem sido baseada, em parte, na natureza da matéria que trata. O método de revelação é natural quando esta é comunicada por meio da natureza, isto é, por meio da criação visível com suas leis e poderes ordinários. É sobrenatural quando é comunicada ao homem de maneira mais elevada, sobrenatural, como quando Deus fala, quer diretamente, que por meio de mensageiros sobrenaturalmente dotados. A substância da revelação era considerada como natural, se pudesse ser adquirida pela razão humana graças ao estudo da natureza; era considerada sobrenatural quando não podia ser conhecida a partir da natureza, nem pela razão humana desassistida. Daí veio a ser muito comum na Idade Média contrastar a razão coma revelação. Na teologia protestante, a revelação natural muitas vezes era chamada revelatio realis, e a revelação sobrenatural revelatio verbalis, porque a primeira está encarnada nas coisas, e a segunda em palavras. No transcorrer do tempo, porém, viu-se que a distinção entre a revelação natural e a sobrenatural era ambígua, visto que toda revelação é sobrenatural quanto à origem e, como revelação de Deus, também quanto ao conteúdo. Ewald, em sua obra sobre Revelation: Its nature and Record, fala da revelação na natureza como revelação imediata, e da revelação na Escritura, que ele considera a única que merece o nome “revelação” no sentido mais completo, como revelação mediata. Uma distinção mais comum, porém, que, aos poucos, foi ganhando aceitação geral, é a de revelação geral e especial. O Dr. Warfield distingue as duas como segue: “A primeira é dirigida de modo geral a todas as criaturas inteligentes, e, portanto, é acessível a todos os homens; a outra dirige-se a uma classe especial de pecadores, aos quais Deus quis tornar conhecida a Sua salvação. A primeira tem em vista localizar e suprir a necessidade natural das criaturas quanto ao conhecimento do seu Deus; a outra, resgatar do seu pecado e suas conseqüências pecadores escravizados e deformados”. A revelação geral está arraigada na criação, é dirigida ao homem na qualidade de homem, e mais particularmente à razão humana, e acha seu propósito na concretização do fim da sua criação, conhecer a Deus e assim desfrutar comunhão com Ele. A revelação especial está arraigada no plano de redenção de Deus, é dirigida ao homem na qualidade de pecador, pode ser adequadamente compreendida e assimilada somente pela fé, e serve ao propósito de assegurar o fim para o qual o homem foi criado a despeito de toda a perturbação produzida pelo pecado. Em vista do plano eterno de revelação, deve-se dizer que esta revelação especial não apareceu como um pensamento posterior, mas estava na mente de Deus desde o princípio. Houve considerável diferença de opinião a respeito da revelação destas duas formas de revelação ume com a outra. Conforme o escolasticismo, a revelação natural fornecia os dados necessários para a construção de uma teologia natural científica pela razão humana. Mas, conquanto capacitasse o homem a atingir conhecimento científico de Deus como a causa última de todas as coisas, não fornecia o conhecimento dos mistérios como os da Trindade, da encarnação, e da redenção. Este conhecimento é dado pela revelação especial. É um conhecimento não demonstrável racionalmente, mas deve ser aceito pela fé. Alguns dos mais antigos escolásticos foram guiados pelo lema. “Credo ut intelligam”, e, depois de aceitarem as verdades da revelação especial pela fé, consideravam necessário elevar a fé à compreensão por meio de uma demonstração racional daquelas verdades, ou pelo menos, provar a sua racionalidade. Tomás de Aquino, porém, considerava impossível isto, exceto na medida em que a revelação especial contivesse verdades que também fizessem parte da revelação natural. Em sua opinião, os mistérios que compunham o conteúdo real da revelação sobrenatural não admitiam nenhuma demonstração lógica. Ele sustentava, porém, que não poderia haver conflito entre as verdades da revelação natural e as da revelação sobrenatural. Se parecer haver conflito, há algo de errado com a filosofia da pessoa, Contudo, permanece o fato de que ele reconhecia, ao lado da estrutura erguida pela fé com base na revelação sobrenatural, um sistema de teologia científica com fundamento na revelação natural. Na primeira a pessoa dá assentimento a alguma coisa porque esta é revelada, na Segunda, porque é percebida como verdadeira à luz da razão natural. A demonstração lógica, que está fora de questão na primeira, é o método natural de prova da segunda. Os reformadores rejeitaram o dualismo dos escolásticos e visaram uma síntese da dupla revelação de Deus. Eles não criam que a razão humana tenha capacidade para elaborar um sistema científico de teologia com base na revelação natural pura e simples. Sua maneira de ver o assunto pode ser representada como segue: como resultado da entrada do pecado no mundo, a escrita de Deus na natureza ficou muito obscura, e em alguns dos mais importantes assuntos, é opaca e ilegível. Além disso, o homem foi atingido pela cegueira espiritual, e, assim, está privado da capacidade de ler corretamente aquilo que Deus originariamente escreveu com clareza nas obras da criação. Para remediar a questão e impedir a frustração do Seu propósito, Deus fez duas coisas. Em Sua revelação sobrenatural, Ele tornou a publicar as verdades da revelação natural, esclareceu-as para evitar mal-entendidos, interpretou-as com vistas às presentes necessidades do homem, e, assim, incorporou-as em sua revelação sobrenatural da redenção. E, em acréscimo a isso, Ele providenciou uma cura para a cegueira espiritual do homem na obra de regeneração e santificação, incluindo iluminação espiritual, e, assim, capacitou o homem mais uma vez a obter verdadeiro conhecimento de Deus, o conhecimento que leva consigo a segurança da vida eterna. Quando os gélidos ventos do racionalismo sopram sobre a Europa, a revelação foi exaltada em detrimento da revelação sobrenatural, o homem ficou intoxicado pela sensação da sua capacidade e bondade, recusou-se a ouvir a voz da autoridade que lhe fala na escritura e a submeter-se a ela, e depositou completa confiança na capacidade da razão humana para guiá-lo para fora do labirinto de ignorância e erro rumo à clara atmosfera do conhecimento verdadeiro. Alguns que ensinavam que a revelação natural era inteiramente suficiente para ensinar aos homens todas as verdades necessárias, ainda admitiam que poderiam aprendê-las mais depressa com o auxílio da revelação sobrenatural. Outros negavam que a autoridade da revelação sobrenatural era completa, enquanto os eu conteúdo não fosse demonstrado pela razão. E finalmente o deísmo, em algumas de suas formas, negava, não somente a necessidade, mas também a possibilidade e realidade da revelação sobrenatural. Em Schleiermacher a ênfase muda do objetivo para o subjetivo, da revelação para a religião, e isso sem nenhuma distinção entre a religião natural e a revelada. O termo “revelação” ainda é conservado, mas fica reservado como um designativo do discernimento espiritual mais profundo do homem, discernimento que, contudo, não lhe vem sem a sua diligente pesquisa pessoal. O que é chamado revelação de um ponto de vista, pode ser chamado descoberta humana de outro. Este conceito tornou-se deveras característico da teologia moderna. Diz Knudson: “mas esta distinção entre a teologia natural e a revelada agora caiu em quase completo desuso. A tendência atual é a de não traçar nenhuma linha definida de distinção entre a revelação e a razão natural, mas, sim, considerar as mais altas percepções da razão como elas próprias constituindo revelação divina. Em todo caso, não há um corpo fixo de verdade revelada, aceita com base em autoridade, e que se mantenha oposta às verdades da razão. Toda verdade hoje repousa em seu poder de apelar para a mente humana”.. É este conceito de revelação que Barth denuncia em termos fortíssimos. Ele está particularmente interessado no sujeito da revelação, e quer conduzir a igreja de volta do subjetivo para o objetivo, da religião para a revelação. Na religião ele vê primariamente os esforços do homem para encontrar Deus, e na revelação, “Deus em busca do Homem” em Jesus Cristo. Barth não conhece nenhuma revelação na natureza. A revelação jamais existe em alguma linha horizontal, mas sempre desce perpendicularmente de cima. A revelação é sempre Deus em ação, Deus falando, trazendo algo inteiramente novo para o homem, alguma coisa da qual ele não poderia Ter um conhecimento prévio, e que se torna uma revelação real somente para aquele que aceita o objeto da revelação mediante uma fé dada por Deus. Jesus Cristo é a revelação de Deus, e somente aquele que conhece a Jesus Cristo conhece alguma coisa da revelação. A revelação é um ato de graça, pelo qual o homem se torna consciente da sua condição pecaminosa, mas também livre, imerecida e perdoadora complacência de Deus em Jesus Cristo. Barth até domina a reconciliação. Visto que Deus é sempre soberano e livre em Sua revelação, esta nunca pode assumir a forma fatualmente presente e objetiva, com limitações definidas, para qual o homem possa voltar-se em qualquer ocasião em busca de instrução. Daí, é um engano considerar a Bíblia como revelação de Deus em qualquer outro sentido que não seja um sentido secundário. Ela é uma testemunha e um sinal da revelação de Deus. O mesmo pode-se dizer, embora num sentido subordinado, da pregação do Evangelho. Mas, seja qual for a mediação pela qual a Palavra de Deus venha ao homem no momento existencial da sua vida, ela é sempre reconhecida pelo homem como uma palavra diretamente dita a ele, e vinda perpendicularmente do alto. Este reconhecimento é efetuado por uma operação especial do Espírito Santo, pelo qual se pode denominar Testimonium Spiritus Santcti individual. A revelação de deus foi dada uma vez por todas em Jesus Cristo: Não em Seu aparecimento histórico, mas no plano supra-histórico no qual os poderes do mundo eterno tornam-se evidentes, tais como Sua encarnação, Sua morte, e Sua ressurreição. E se Sua revelação é também contínua, digamos assim, só o é no sentido de que Deus continua a falar a pecadores individuais, no momento existencial de suas vidas, através da revelação em Cristo, mediada pela Bíblia e pela pregação. Assim, somos deixados com meros vislumbres da revelação vinda a indivíduos, da qual somente aqueles indivíduos têm absoluta certeza; e com falíveis testemunhas ou sinais da revelação em Jesus Cristo, bem precário fundamento para a teologia. Não admira que Barth tenha dúvida quanto à possibilidade de elaborar uma doutrina de Deus. A humanidade não tem posse de uma infalível revelação de Deus e, de sua singular revelação em Cristo e sua extensão nas revelações especiais que vêm a certos homens ela tem conhecimento somente através do testemunho de testemunhas falíveis. QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. Em que sentido podemos falar do Deus oculto ou desconhecido, a despeito do fato de que Ele se revelou? 2. Como os escolásticos e os Reformadores diferem sobre este ponto? 3. Qual é a posição da teologia moderna? 4. Por que a revelação é essencial à religião? 5. Como agnosticismo difere teoricamente do ateísmo? 6. O agnosticismo é mais favorável à religião do que o ateísmo? 7. Como Kant promoveu o agnosticismo? 8. Qual é a doutrina de Sir William Hamilton sobre a relatividade do conhecimento? 9. Que forma o agnosticismo tomou no positivismo? 10. Que outras formas tomou? 11. Por que alguns falam de Barth como agnóstico? 12. Como se deve responder a esta acusação? 13. “Revelação” é um conceito ativo ou passivo? 14. É possível haver teologia sem revelação? Se não, por quê? 15. Pode-se defender a doutrina das idéias inatas? 16. O que se quer dizer com “Cognitio Dei Insita”? 17. Como diferem a revelação natural e a sobrenatural? 18. A distinção entre a revelação geral e especial forma um exato paralelo da distinção precedente? 19. Que diferentes conceitos forma defendidos quanto à relação entre ambas? 20. Como difere a revelação do descobrimento humano? 21. Barth crê na revelação geral? 22. Como concebe ele a revelação especial? BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Bavinck, Geref. Dogm. II, p. 1-74; Kuyper, Dict. Dogm., De Deo I, p. p.1-76; Hodge, Syst. Theol. I, p. 191-240; 335-365; Shedd, Dogm. Theol. I, p. 195-220; Thornwell, Collected Works I, p. 74-142; Dorner, System of Chr. Doct .I, p. 79-159; Adeney, The Christian Conception of God, p. 19-57; Steenstra, The Being of God as Unity and Trinity, p. 1-25; Hendry, God the Creator; Gilson, Reason and Revelation in the Middle Ages; Baillie and Martin, Revelation (A Symposium of Aulen, Barth, Bulga Koff, D’Arcy, Eliot, Horton, and Temple); Warfield, Revelation and Ispiration, p.3-48; Orr, Revelation and Inspiration, p. 1-66; Camfield, Revelation and the Holy Spirit, p. 11-127; Dickie, Revelation and Response; Warfield, Calvin And Calvinism ( Calvin’s Doctrine of the Knowledge of God). (Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 32)