segunda-feira, 24 de maio de 2010

A Doutrina de Cristo antes da Reforma.

1. ATÉ AO CONCÍLIO DE CALCEDÔNIA. Na literatura cristã primitiva Cristo sobressai como humano e divino, como o Filho do homem, mas também como o Filho de Deus. Seu caráter sem pecado é defendido, e Ele é considerado como legítimo objeto de culto. Naturalmente, o problema suscitado por Cristo, como ao mesmo tempo Deus e homem, e as dificuldades envolvidas em tal concepção, não foram plenamente sentidos pela mente cristã dos primeiros tempos, e só assomaram a ela à luz da controvérsia. Era simplesmente natural que o judaísmo, com a sua forte ênfase ao monoteísmo, exercesse considerável influência sobre os primeiros cristãos, de extração judaica. Os ebionistas (ou parte deles) sentiram-se constrangidos, no interesse do monoteísmo, a negar a divindade de Cristo. Eles O consideravam como simples homem, filho de José e Maria, qualificado em Seu batismo para ser o Messias, pela descida do Espírito Santo sobre Ele. Havia outros na Igreja primitiva cuja doutrina sobre Cristo foi elaborada sobre linhas semelhantes. Os alogi (álogos ou alogianos), que rejeitavam os escritos de João por que entendiam que a sua doutrina do Logos está em conflito, com o restante do Novo testamento, também viam em Jesus apenas um homem, conquanto miraculosamente nascido de uma viagem, e ensinavam que Cristo desceu sobre Ele no batismo, conferindo-lhe poderes sobrenaturais. No essencial, esta era também a posição dos monarquistas dinâmicos. Paulo de Samosata, seu principal representante, distinguia entre Jesus e o Logos. Ele considerava Aquele como um homem igual a todos os demais, nascido de Maria, e Este como razão impessoal divina, que fez Sua habitação em Cristo num sentido preeminente, desde a ocasião do Seu batismo, e assim O qualificou para a Sua grande tarefa. Em vista dessa negação, fazia parte da função dos primitivos apologetas a defesa da doutrina da divindade de Cristo.
Se havia alguns que sacrificavam a divindade pela defesa da humanidade de Cristo, havia outros que invertiam a ordem. Os gnósticos foram profundamente influenciados pela concepção dualista dos gregos, em que a matéria, entendida como inerentemente má, é descrita como completamente oposta ao espírito; e por uma tendência mística para considerar as coisas terrenas como representações alegóricas dos grandes processos redentores cósmicos. Rejeitavam a idéia de uma encarnação, de uma manifestação de Deus em forma visível, visto que isto envolveria um contato direto do espírito com a matéria. Diz Harnack que a maioria deles considerava Cristo como um Espírito consubstancial com o Pai. Conforme alguns, Ele desceu sobre o homem Jesus quando do Seu batismo, mas O deixou de novo antes da Sua crucificação; ao passo que, segundo outros, Ele assumiu um corpo meramente fantasmagórico. Os monarquistas modalistas também negavam a humanidade de Cristo, em parte no interesse da Sua divindade, e em parte para preservar a unidade do Ser Divino. Viam nele apenas um modo ou uma manifestação do Deus único, em quem não reconheciam nenhuma distinção de pessoas. Os chamados pais alexandrinos e antignósticos empreenderam a defesa da divindade de Cristo, mas em seu trabalho de defesa não evitaram inteiramente o erro de descrevê-lo como subordinado ao Pai. Mesmo Tertuliano ensinava uma espécie de subordinação, mas especialmente Orígenes, que não hesitava em falar de uma subordinação quanto à essência. Isto veio a ser um ponto de partida para o arianismo, no qual se faz distinção entre Cristo e o Logos como a razão divina, e Cristo é apresentado como uma criatura pré-temporal, super-humana, a primeira das criaturas, não Deus e, todavia, mais que homem. Atanásio contestou a Ário e defendeu vigorosamente a posição de que o Filho é consubstancial com o Pai e da mesma essência do Pai, posição que foi oficialmente adotada pelo Concilio de Nicéia, em 325. O semi-arianismo propôs uma via media*, declarando que a essência do Filho é semelhante à do Pai.
Quando a doutrina da divindade do Filho foi estabelecida oficialmente, surgiu, como é natural, a questão quanto à relação mutua das duas naturezas de Cristo. Apolinário ofereceu uma solução ao problema. Aceitando a concepção tricotomia o homem como consistindo de corpo, alma e espírito, ele tomou a posição de que o Logos assumiu o lugar do espírito (pneuma) no homem, que ele considerava a sede do pecado. Seu principal interesse era assegurar a unidade da pessoa de Cristo, sem sacrificar a sua real divindade; e também resguardar a impecabilidade de Cristo. Mas o fez em detrimento da completa humanidade do Salvador e, conseqüentemente, a sua posição foi explicitamente condenada pelo Concilio de Constantinopla, em 381. Uma das coisas pelas quais Apolinário lutava era a unidade da pessoa de Cristo. Que isso realmente corria perigo viu-se claramente na posição assumida pela escola de Antioquia, que exagerava a distinção das duas naturezas de Cristo. Theodoro de Mopsuéstia e Nestório acentuavam a completa humanidade de Cristo e entendiam que a habitação do Logos nele era apenas uma habitação moral, como a que os crentes também gozam, embora não no mesmo grau. Eles viam em Cristo um homem lado a lado com Deus, em aliança com Deus, compartindo o propósito de Deus, mas não unido a Ele numa unidade de vida pessoal única – viam nele um Mediador que consistia de duas pessoas. Em oposição a eles, Cirilo de Alexandria salientava fortemente a unidade da pessoa de Cristo e, na opinião dos seus oponentes, negava as duas naturezas. Conquanto com toda a probabilidade esses oponentes o tenham entendido mal, Eutico e os seus seguidores certamente recorrem a ele quando assumiram a posição de que a natureza humana de Cristo foi absorvida pela divina, ou que as duas se fundiram resultando numa só natureza, posição que envolvia a negação das duas naturezas de Cristo. O Concílio de Calcedônia, em 451, condenou esses dois conceitos e manteve a crença na unidade da pessoa, como também na dualidade das naturezas.