terça-feira, 18 de setembro de 2012

. A VONTADE SOBERANA DE DEUS

a. A vontade de Deus em geral. A Bíblia emprega várias palavras para indicar a vontade de Deus, a saber, as palavras hebraicas chaphets, tsebhu e raston, e as palavras gregas boule e thelema. A importância da vontade divina aparece de várias maneiras na Escritura. É apresentada como a causa final de todas as coisas. Tudo é derivado dela: a criação e a preservação, Sl 135.6; Jr 18.6; Ap 4.11; o governo, Pv 21.1; Dn 4.35; a eleição e a reprovação, Rm 9.15, 16; Ef 1.11; os sofrimentos de Cristo, Lc 22.42; At 2.23; a regeneração, Tg 1.18; a santificação, Fp 2.13; os sofrimentos dos crentes, 1 Pe 3.17; a vida e o destino do homem. At 18.21; Rm 15.32; Tg 4.15, e até as menores coisas da vida, Mt 10.29. Daí, a teologia cristã sempre reconheceu a vontade de Deus como a causa última de todas as coisas, embora a filosofia às vezes mostre uma inclinação para procurar uma causa mais profunda no próprio Ser do Absoluto. Todavia, a tentativa de fundamentar tudo no próprio Ser de Deus geralmente redunda em panteísmo. A palavra “vontade”, no sentido em que é aplicada a Deus, nem sempre tem a mesma conotação na Escritura. Pode denotar (1) toda a natureza moral de Deus, incluindo atributos como amor, santidade, justiça, etc; (2) a faculdade de auto-determinação, isto é, o poder de determinar que o Eu siga um curso de ação ou formule um plano; (3) o produto desta atividade, isto é, o plano ou propósito predeterminado; (4) o poder de executar este plano e de realizar este propósito (a vontade em ação, ou seja, a onipotência); e (5) a regra de vida firmada para as criaturas racionais. É primariamente na vontade de Deus como a faculdade de autodeterminação que estamos interessados no momento. Esta pode ser definida como a perfeição do Seu Ser pela qual Ele, num ato sumamente simples, dirige-se a Si mesmo como o Sumo Bem (isto é, deleita-se em Si mesmo como tal) e as Suas criaturas por amor do Seu nome e, assim, é a base do ser e da continuada existência delas. Com referência ao universo e a todas as criaturas que ele contém, isto naturalmente inclui a idéia de causação. b. Distinções aplicadas à vontade de Deus. Têm-se aplicado várias distinções à vontade de Deus. Algumas destas encontraram pouco apoio da parte da teologia reformada, calvinista, como aconteceu com a distinção entre uma vontade de Deus antecedente e uma vontade conseqüente, e com a distinção entre uma vontade absoluta e uma condicional. Estas distinções não somente estavam expostas a uma compreensão errônea, mas de fato foram interpretadas de maneiras passíveis de objeção. Outras, porém, foram consideradas úteis e, portanto, foram aceitas mais geralmente. Estas podem ser asseveradas como segue: (1) A vontade decretatória de Deus e Sua vontade preceptiva. A primeira é a vontade de Deus pela qual ele projeta ou decreta tudo que virá a acontecer, quer pretenda realiza-lo efetivamente (causativamente), quer permita que venha a ocorrer por meio da livre ação das Suas criaturas racionais. A segunda é a regra de vida que Deus firmou para as Suas criaturas morais, indicando os deveres que lhes impõe. A primeira é realizada sempre, ao passo que a segunda é desobedecida com freqüência. (2) A vontade de eudokia e a vontade de eurestia. Esta divisão não se relaciona tanto com o propósito de fazer algo, mas principalmente com o prazer de fazer algo ou com o desejo de ver alguma coisa feita. Contudo, corresponde à divisão anterior, no fato de que a vontade de eudokia, como a do decreto, compreende aquilo que será realizado com certeza, enquanto que a vontade de eurestia, como a do preceito, abrange simplesmente o que Deus apraz que as Suas criaturas façam. A palavra eudokia só se refere ao bem, e não ao mal; cf. Mt 11.26; É incorreto dizer que o elemento de complacência ou deleite está sempre presente nela. (3) A vontade do beneplacitum e a vontade do signum. Aquela de novo denota a vontade de Deus como incorporada em Seu conselho oculto, enquanto não o torna conhecido por alguma revelação ou pelo próprio evento. Toda e qualquer vontade revelada torna-se um signum. Esta distinção visa a corresponder à que se faz entre a vontade decretatória de Deus e Sua vontade preceptiva, mas dificilmente se pode dizer que o faça. O beneplácito de Deus também acha expressão em Sua vontade preceptiva; e a decretatória às vezes também chega ao nosso conhecimento por meio de um signum. (4) A vontade secreta de Deus e Sua vontade revelada. Esta distinção é a mais comum. A primeira é a vontade do decreto de Deus, em grande medida oculta em Deus, enquanto que a segunda é a vontade do preceito, revelada na Lei e no Evangelho. A distinção baseia-se em Dt 29.29. A vontade secreta de Deus é mencionada em Sl 115.3; Dn 4.17, 25, 32, 35; Rm 9.18, 19; 11.33, 34; Ef 1.5, 9, 11; e Sua vontade revelada, em Mt 7.21; 12.50; Jo 4.34; 7.17; Rm 12.2. Esta última é acessível a todos, e não está longe de nós, Dt 30.14; Rm 10.8. A vontade secreta de Deus pertence a todas as coisas que Ele quer efetuar ou permitir, e que, portanto, São absolutamente fixas. A vontade revelada prescreve os deveres do homem e apresenta o modo pelo qual ele pode fruir as bênçãos de Deus. c. A liberdade da vontade de Deus. Freqüentemente se debate a questão se Deus, no exercício de Sua vontade, age necessária ou livremente. A resposta a esta questão requer cuidadosa discriminação. Exatamente como há uma scientia necessaria e uma scientia libera, há também uma voluntas necessaria (vontade necessária) e uma voluntas libera (vontade livre) em Deus. Deus mesmo é o objeto da primeira. Ele necessariamente quer a Si próprio e quer a Sua natureza santa, bem como as distinções pessoais da Divindade. Significa que Ele necessariamente se ama a Si próprio e tem prazer na contemplação e Suas perfeições. Todavia, Ele não está sob nenhuma compulsão, mas age de acordo com a lei do Seu Ser; e esta, conquanto necessária, é também a suprema liberdade. É mais que evidente que a idéia de causação está ausente neste ponto, e que a de complacência ou de auto-aprovação está no primeiro plano. As criaturas de Deus são, porém, os objetos da Sua voluntas libera. Deus determina voluntariamente o que e quem Ele criará, e os tempos, lugares e circunstâncias de suas vidas. Ele traça as veredas de todas as Suas criaturas racionais, determina o seu destino e as utiliza para os Seus propósitos. E embora as dote de liberdade, contudo Sua vontade lhes controla as ações. A Bíblia fala desta liberdade da vontade de Deus nos termos mais absolutos, Jo 11.10; 33.13; Sl 115.3; Pv 21.1; Is 10.15; 29.16; 45.9; Mt 20.15; Rm 9.15 – 18, 20, 21; 1 Co 12.11; Ap 4.11. A igreja sempre defendeu esta liberdade, mas também deu ênfase ao fato de que não pode ser considerada como indiferença absoluta. Duns Scotus falava de uma vontade de Deus em nenhum sentido determinada; mas esta idéia de uma vontade cega, agindo com perfeita indiferença, foi rejeitada pela igreja. A liberdade de Deus não é pura indiferença, mas autodeterminação racional. Deus tem Suas razões para querer como quer, razões que O induzem a escolher um fim e não outro, e uma série de meios para realizar um fim, em preferência a outros meios. Em cada caso há um motivo predominante, que torna o fim escolhido e os meios selecionados sumamente agradáveis a Ele, embora não sejamos capazes de determinar que motivo é esse. Em geral se pode dizer que Deus não pode querer nada que seja contrário à Sua natureza, à Sua sabedoria ou amor, à Sua justiça ou santidade. O dr. Bavinck assinala que raramente podemos discernir por que Deus quis uma coisa e não outra, e que não nos é possível, e tampouco permitido, procurar alguma base mais profunda que a vontade de Deus em que as coisas se fundam, porque todas as tentativas desse jaez redundam em procurar uma base para a criatura no próprio Ser de Deus, privando-o do seu caráter contingente e tornando-a necessária, eterna, divina. d. A vontade de Deus em relação ao pecado. A doutrina da vontade de Deus muitas vezes dá surgimento a graves questões. Levantam-se aqui problemas que nunca foram resolvidos e que provavelmente são insolúveis para o homem. (1) Diz-se que, se a vontade decretatória de Deus determinou também a entrada do pecado no mundo, com isso Deus é o autor do pecado e realmente quer uma coisa contrária às Suas perfeições morais. Para fugirem à dificuldade, os arminianos dizem que a vontade de Deus, permitindo o pecado, depende do Seu pré-conhecimento do curso que o homem escolheria. Os teólogos reformados (calvinistas), embora mantendo, com base em passagens como At 2.23; 3.8; etc., que a vontade decretatória de Deus inclui também os atos pecaminosos do homem, sempre têm o cuidado de assinalar que se deve conceber isto de modo que não se faça de Deus o autor do pecado. Admitem francamente que não podem resolver a dificuldade, mas ao mesmo tempo fazem algumas valiosas distinções de comprovada utilidade. A maioria deles insiste em que a vontade de Deus quanto ao pecado é de permitir o pecado, e não de efetuá-lo, pois Ele realiza o bem moral. Esta terminologia é permissível, supondo-se que seja compreendida corretamente. Deve-se ter em mente que a vontade de Deus de permitir o pecado leva consigo a certeza de que o pecado virá a ocorrer. Outros chamam a tenção para o fato de que, embora os termos “vontade” e “querer” possam incluir a idéia de complacência ou deleite, às vezes indicam uma simples determinação da vontade; e que, portanto, a vontade de Deus de permitir o pecado não implica necessariamente que Ele tem deleite ou prazer no pecado. (2) Diz-se, ainda, que a vontade decretatória de Deus e Sua vontade preceptiva muitas vezes são contraditórias, que Sua vontade decretatória inclui muitas coisas que Ele proíbe em Sua vontade preceptiva, e exclui muitas coisas que Ele ordena em Sua vontade preceptiva, cf. Gn 22; Êx 4.21-23; 2 Rs 20.1-7; At 2.23. Todavia, é de grande importância sustentar tanto a vontade decretatória como a preceptiva, mas com o definido entendimento de que, embora nos pareçam diversas, são fundamentalmente uma só em Deus. Conquanto uma solução perfeitamente satisfatória da dificuldade esteja fora de questão no presente, podemos aproximar-nos de uma solução. Quando falamos da vontade decretatória e da vontade preceptiva de Deus, empregamos a palavra “vontade” em dois sentidos diferentes. Pela primeira, Deus determinou o que Ele fará ou o que virá a acontecer; na segunda Ele nos revela o que estamos na obrigação de fazer. Ao mesmo tempo, devemos lembrar-nos de que a lei moral, a regra do nosso viver, é também, em certo sentido, a encarnação da vontade de Deus. É uma expressão da Sua natureza santa e daquilo que esta naturalmente requer de todas as criaturas morais. Daí, outra observação pode ser acrescentada à anterior. A vontade decretatória e a vontade preceptiva de Deus não estão em conflito no sentido de que na primeira Ele tem prazer no pecado e na segunda não; nem no sentido de que, de acordo com a primeira, Ele não quer a salvação de todos os indivíduos como uma violação positiva, e de acordo com a segunda, quer. Mesmo de acordo com a vontade decretatória Deus não tem prazer no pecado; e mesmo de acordo com a vontade preceptiva Ele não quer a salvação de todos os indivíduos com uma volição positiva. 2. O PODER SOBERANO DE DEUS. A soberania de Deus acha expressão, não somente na vontade divina, mas também na onipotência de Deus, ou em Seu poder de executar a Sua vontade. Pode-se denominar o poder de Deus a eficaz energia da Sua natureza, ou a perfeição do Seu Ser pela qual Ele é a causalidade absoluta e suprema. É costume distinguir entre uma potentia Dei absoluta (um absoluto poder de Deus) e uma potentia Dei ordinata (poder ordenado de Deus). Contudo, a teologia reformada, calvinista, rejeita esta distinção no sentido em que a entendiam os escolásticos, que afirmavam que Deus, em virtude do Seu poder absoluto, pode efetuar contradições, e pode até pecar e aniquilar-se a Si próprio. Ao mesmo tempo, adota a distinção como expressão de uma verdade real, embora nem sempre a apresente do mesmo modo. De acordo com Hodge e Shedd, o poder absoluto é a eficiência divina, exercida sem a intervenção de causas secundárias; enquanto que o poder ordenado é a eficiência de Deus, exercida pela ordenada operação de causas secundárias. O conceito mais geral é exposto por Charnock como segue: “Absoluto é o poder pelo qual Deus é capaz de fazer o que Ele não fará, mas que tem possibilidade de ser feito; ordenado é o poder pelo qual Deus faz o que decretou fazer, isto é, o que Ele ordenou ou marcou para ser posto em exercício; os quais não são poderes distintos, mas um e o mesmo poder. O Seu poder ordenado é parte do Seu poder absoluto; pois se Ele não tivesse poder para fazer tudo o que pudesse desejar, não teria poder para fazer tudo que deseja”. A potentia ordinata pode ser definida como a perfeição de Deus pela qual Ele, mediante o simples exercício da Sua vontade, pode realizar tudo quanto está presente em Sua vontade ou conselho. O poder de Deus, em seu exercício fatual, limita-se àquilo que o Seu decreto eterno abrange. Mas o exercício fatual do poder de Deus não representa os seus limites. Deus poderia fazer mais que isso, se fosse esta a Sua intenção. Nesse sentido podemos falar em potentia absoluta, ou poder absoluto de Deus. Deve-se manter esta posição contra aqueles que, como Schleiermacher e Strauss, sustentam que o poder de Deus se limita àquilo que Ele realiza de fato. Mas em nossa afirmação do poder absoluto de Deus precisamos acautelar-nos contra noções errôneas. A Bíblia nos ensina, por um lado, que o poder de Deus estende-se além daquilo que é realizado de fato, Gn 18.14; Jr 32.27; Zc 8.6; Mt 3.9; 26.53. Portanto, não podemos dizer que aquilo que Deus não realiza concretamente não Lhe é possível realizar. Mas, por outro lado, ela indica também que há muitas coisas que Deus não pode fazer. Ele não pode mentir, pecar, mudar, e não pode negar-se a Si próprio, Nm 23.19; 1 Sm 15.29; 2 Tm 2.13; Hb 6.18; Tg 1.13, 17. Não há poder absoluto nele, divorciado de Suas perfeições, e em virtude do qual Ele pudesse fazer todo tipo de coisas inerentemente contraditórias entre si. A idéia da onipotência de Deus é expressa pelo nome ‘El-Shaddai; e a Bíblia fala a seu respeito em termos que não deixam dúvida, em passagens como Jó 9.12; Sl 115.3; Jr 32.17; Mt 19.26; Lc 1.37; Rm 1.20; Ef 1.19. Deus manifesta o Seu poder na criação, Rm 4.17; Is 44.24; nas obras da providencia, Hb 1.3; e na redenção de pecadores, 1 Co 1.24; Rm 1.16. QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. Em que diferentes sentidos podemos falar da presciência de Deus? 2. Como os arminianos concebem esta presciência? 3. Quais as objeções à idéia jesuítica de uma scientia media? 4. Como devemos julgar a ênfase moderna ao amor de Deus como o atributo divino central e absolutamente determinante? 5. Que concepção tem Otto de “o Santo” e, Deus? 6. Qual a objeção à posição de que os castigos impostos por Deus servem simplesmente para reformar o pecador, ou dissuadir outros de pecar? 7. Como os socinianos e Grócio concebem a justiça retributiva de Deus? 8. É correto dizer que Deus pode fazer tudo, em virtude de sua onipotência? BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Bavinck, Geref. Dogm. II p. 171-259; Kuyper, Dict. Dogm. De Deo I, p. 355-417; Vos, Geref. Dogm. I, p. 2-36; Hodge, Syst. Theol. I, p. 393-441; Shedd, Dogm. Theol. I, p. 359-392; Dabney, Syst. And Polem. Theol., p. 154-174; pope, Chr. Theol. I, p. 307-358; Watson, Theol. Inst., Part II Chap. II; Wilmers, Handbook of the Chr. Religion, p. 171-181; Harris, God, Creator and Lord of All I, p. 128-209; Charnock, The Existence and Attributes of God, Discourse III, VII-IX; Bates, On the Attributes; Clarke, The Christian Doctrine of God, p. 56-115; Snowden, The Personality of God; Adeney, The Christian Conception of God, p. 86-152; Macintosh, Theology as an Empirical Science, p. 159-194; Strong, Syst. Theol., p. 282-303. (BERKHOF, L - TEOLOGIA SISTEMÁTICA)