terça-feira, 27 de agosto de 2013

A IDÉIA DA CONCORRÊNCIA DIVINA E SUA PROVA BÍBLICA

a. Definição e explicação. Pode-se definir a concorrência como a cooperação do poder divino com todos os poderes subordinados, em harmonia com as leis pré-estabelecidas de sua operação, fazendo-os agir precisamente como agem. Alguns tendem a limitar a operação da concorrência, no que se refere ao homem, às ações humanas moralmente boas e, portanto, recomendáveis; outros, mais logicamente, estendem-na ações de toda sorte. Deve-se notar logo de início que esta doutrina implica duas coisas: (1) Que as forças da natureza não agem por si mesmas, isto é, simplesmente por seu próprio poder inerente, mas Deus exerce operação imediata em cada ato da criatura. Deve-se sustentar esta verdade em oposição à posição deísta. (2) Que as causas secundárias são reais, e não devem ser consideradas apenas como o poder operativo e Deus. É só com a condição de que as causas secundárias sejam reais que podemos falar com propriedade de uma concorrência ou cooperação da Causa Primeira com as causas secundárias. Deve-se dar ênfase a isto, contra a idéia panteísta de que Deus é o único agente em ação no mundo. b. prova bíblica da concorrência divina. A Bíblia ensina claramente que a providência de Deus pertence, não somente à existência, mas também às ações ou operações da criatura. A verdade geral de que os homens não agem independentemente, mas são governados pela vontade de Deus, transparece em diversas passagens da Escritura. Em Gn 45.5 diz José que foi Deus, e não seus irmãos, que o enviara para o Egito. Em Ex. 4.11, 12 diz o Senhor que Ele será com a boca de Moisés e lhe ensinará o que dizer; e em Js 11.6 Ele dá a Josué a certeza de que o livrará dos inimigos de Israel. Provérbios 21.1 ensina-nos que “assim é o coração do rei na mão do Senhor; este segundo o seu quere, o inclina”; e Esdras 6.22, que o Senhor tinha mudado “o coração do rei da Assíria” para com Israel. Em Dt 8.18 traz-se à memória de Israel o fato de que foi Jeová que lhe deu capacidade para conseguir riqueza. Mais particularmente, a escritura evidencia também que há uma espécie de cooperação divina naquilo que é mau. Conforme 2 Sm 16.11, Jeová mandou Simei amaldiçoar a Davi. Também o Senhor chama à Assíria “cetro da minha ira”, e diz: “A vara em sua mão é o instrumento do meu furo”, Is 10.5. Além disso, Ele pôs um espírito mentiroso na boca dos profetas de Acabe, 1 Rs 22.20-23. 2. ERROS QUE DEVEM DER EVITADOS. Há vários erros contra os quais devemos guardar-nos, em conexão com esta doutrina. a. Que ela consiste meramente numa comunicação geral de poder, sem determinar de forma alguma a ação específica. Os jesuítas, os socinianos e os arminianos sustentam que a concorrência divina é apenas uma cooperação geral e indiferente, de modo que é a causa secundária que dirige a ação ao seu fim particular. Essa cooperação é igualmente comum a todas as causas, estimulando-as à ação, mas de modo inteiramente indeterminado. Embora ative a causa secundária, deixa que esta determine o seu particular tipo e modo de ação. Fosse. Porém, esta situação, estaria no poder do homem frustrar o plano de Deus, e a causa primeira seria subserviente à causa secundária. O homem estaria de posse do governo, e não haveria providência divina. b. Que é de natureza tal, que o homem realiza parte da obra, e Deus realiza também uma parte dela. Às vezes se descreve a cooperação de Deus e o homem como se fosse algo como os esforços conjuntos de um grupo de cavalos tirando juntos, cada qual fazendo a sua parte. Esta é uma visão equívoca da distribuição da obra. De fato, cada realização é, em sua inteireza, tanto uma realização de Deus como da criatura. É uma realização de Deus no sentido de que não há nada que independa da vontade divina, e no sentido de que é determinada, momento a momento, pela vontade de Deus. E é uma realização do homem no sentido de que Deus a leva a efeito por meio da atividade própria da criatura. Há uma interpretação aí, mas nenhuma limitação mútua. c. Que a obra de Deus e a da criatura, na concorrência, são coordenadas. Isto já está excluído, pelo que foi dito no item anterior. A obra de Deus sempre tem prioridade, pois o homem depende de Deus em tudo que faz. A afirmação de Cristo na Escritura: “sem mim nada podeis fazer” aplica-se em todos os campos do esforço humano. A relação exata de ambos fica mais bem demonstrada nas seguintes características da concorrência divina. 3. CARACTERÍSTICAS DA CONCORRÊNCIA DIVINA. a. É prévia e predeterminante, não num sentido temporal, mas, sim, num sentido lógico. Na criatura não há nenhum princípio de atividade autônoma à qual simplesmente juntasse a Sua atividade. Em cada caso, o impulso para a ação e movimento procede de Deus. Tem que haver uma influência da energia divina antes de poder agir a criatura. Deve-se notar particularmente que esta influência não termina na atividade da criatura, mas na criatura mesma. Tudo que há na natureza Deus faz agir e mover-se na direção de um fim predeterminado. Assim, Deus capacita e ajuda as Suas criaturas racionais, como causas secundárias, a funcionar, e isso não apenas dotando-as de energia, de maneira geral, mas dando-lhes energia para certos atos específicos. Ele opera tudo em todos, 1 Co 12.6, e também neste caso, opera tudo conforme o conselho da sua vontade, Ef 1.11. Ele deu a Israel a capacidade de obter riqueza, Dt 8.18, e opera nos crentes tanto o querer como o realizar, segundo a Sua boa vontade, Fp 2.13. Os pelagianos e semipelagianos de todo tipo geralmente se dispõem a admitir que a criatura não pode agir sem um influxo do poder divino, mas sustentam que este não é tão específico que chegue a determinar o caráter da ação de algum modo. b. É também uma concorrência simultânea. Depois de iniciada a atividade da criatura, a vontade eficaz de Deus terá que acompanha-la a todo momento, se é que a referida atividade deva continuar. Não há um só momento em que a criatura aja independentemente da vontade e do poder de Deus. É só nele que vivemos e nos movemos e existimos, At 17.28. Esta atividade divina acompanha a acaso do homem em todo e qualquer ponto, mas sem privar o homem, um ato pelo qual ele é responsabilizado. Esta concorrência simultânea não redunda numa identificação da causa prima com a causa secunda Num sentido muito real, a operação é o produto de ambas as causas. O homem é e continua sendo o verdadeiro sujeito da ação. Bavinck ilustra isto indicando o fato de que a madeira queima, que somente Deus a faz queimar, mas que formalmente esta queima não pode ser atribuída a Deus, mas unicamente à madeira como sujeito da ação de queimar. É evidente que esta ação simultânea não pode ser separada da concorrência prévia e determinante, mas deve ser distinguida dela. Estritamente falando, diversamente da concorrência prévia, a ação simultânea termina, não na criatura, mas em sua atividade. Desde que não termina na criatura, pode, no abstrato, ser interpretada como não tendo quaisquer suportes éticos. Isto explica por que alguns teólogos reformados (calvinistas) limitavam a concorrência prévia às boas ações dos homens, e quanto ao restante, contentavam-se em ensinar uma concordância simultânea. c. Finalmente, é uma concorrência imediata. Em seu governo do mundo, Deus emprega toda sorte de meios para a consecução dos Seus fins; mas não opera deste modo na concorrência divina. Quando destruiu com fogo as cidades da planície, praticou um ato de governo divino sem empregar meios ativos. Mas, ao mesmo tempo, esse ato constituiu Sua concorrência imediata, pela qual habilitou o fogo a cair, queimar e destruir. Assim, também Deus opera no homem, dotando-o de poder, determinando as suas ações e sustentando as suas atividades o tempo todo. 4. A CONCORRÊNCIA DIVINA E O PECADO. Os pelagianos, os semipelagianos e os arminianos levantam séria objeção a esta doutrina da providência. Sustentam eles que uma concorrência prévia, que não seja meramente geral, mas que predetermine o homem a ações específicas, faz de Deus o autor do pecado, por este responsável. Os teólogos reformados (calvinistas) estão bem cientes da dificuldade que aqui se apresenta, mas não se sentem livres para iludi-la negando o absoluto domínio de Deus sobre as livres ações das Suas criaturas morais, visto que a Escritura o ensina claramente, Gn 45.5; 50.19, 20; Êx 10.1, 20; 2 Sm 16.10, 11; Is 10. 5-7; At 2.23; 4.27, 28. Eles se sentem constrangidos a ensinar: (a) que os atos pecaminosos estão sob o governo divino e ocorrem de acordo com a predeterminação e o propósito de Deus, mas somente pela permissão divina, de modo que Ele não leva eficientemente os homens a pecarem, Gn 45.5; 50.20; Êx 14.17; Is 66.4; Rm 9.22; 2 Ts 2.11; (b) que Deus muitas vezes reprime as obras pecaminosas do pecador, Gn 3.6; Jó 1.12; 2.6; Sl 76.10; Is 10.15; At 7.51; e (c) que Deus, no interesse do Seu propósito, dirige o mal para o bem, Gn 50.20; Sl 76.10; At 3.13. Não significa, porém, que todos eles concordam na resposta à questão, se há uma direta, imediata dinamização do poder ativo da criatura, dispondo-a e predeterminando-a eficazmente ao ato específico, e também capacitando-a para praticar aquele ato. Dabney, por exemplo, embora admitindo uma concorrência física na criação inferior, nega-a com relação aos agentes livres. Contudo, a grande maioria a defende também no caso dos seres morais livres. Mesmo Dabney concorda que o governo de Deus sobre todos os atos das Suas criaturas é certo, soberano e eficaz; e, daí, ele tem que enfrentar, juntamente com todos os demais, a questão quanto à responsabilidade de Deus pelo pecado. Dá ele sua conclusão coma seguintes palavras: “É esta, pois, a minha descrição da evolução do propósito de Deus quanto aos atos pecaminosos; de tal modo dispõe e agrupa eventos e objetos em torno de agentes livres por Sua multiforme sabedoria e poder, que cada alma, em cada fase, é posta na presença das circunstâncias que, Ele sabe, serão um induzimento suficiente para que ela se realize, por sua própria atividade natural e livre, exatamente aquilo que se chama plano de Deus. Assim, o ato é somente do homem, conquanto a sua ocorrência seja eficazmente assegurada por Deus. E o pecado é somente do homem. O interesse de Deus pelo pecado é santo, primeiro, porque toda a Sua ação pessoal nos acertos para assegurar a sua ocorrência foi santa; e segundo, os Seus fins e propósitos são santos. Deus não quer o pecado do ato por sua pecaminosidade; mas somente quer o resultado para o qual o pecado é apenas um meio, e esse resultado é sempre digno da Sua santidade”. Contudo, a imensa maioria dos teólogos reformados (calvinistas) sustenta o concurso em questão, e busca a solução da dificuldade fazendo distinção entre a matéria e a forma* do ato pecaminoso, e atribuindo a última exclusivamente ao homem. O concurso divino dinamiza o homem e o determina eficazmente ao ato específico, mas é o homem que dá ao ato a sua qualidade formal e que, portanto, é responsável por seu caráter pecaminoso. De nenhuma destas soluções se pode dizer que satisfaz inteiram,ente, de modo que o problema da relação de Deus com o pecado continua sendo um mistério. (Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 168)