terça-feira, 30 de julho de 2013

Os Elementos Constitutivos da Natureza Humana

1. AS DIFERENTES OPINIÕES QUE FORAM COMUNS NA HISTÓRIA: DICOTOMIA E TRICOTOMIA. É costume. Especialmente nos círculos cristãos, entender que o homem consiste de duas partes distintas, e de duas somente, a saber, corpo e alma. Esta concepção é tecnicamente denominada dicotomia. Ao lado dela, porém, apareceu outra, segundo a qual a natureza humana consiste de três partes, corpo, alma e espírito. É designada pelo termo tricotomia. O conceito do homem tripartido originou-se na filosofia grega, que entendia a relação mútua entre o corpo e o espírito do homem segundo a analogia da mútua relação entre o universo material de Deus. Pensava-se que, justamente como estes só podiam ter comunhão um com o outro por meio de uma terceira substância ou de um ser intermediário, assim aqueles só podiam entrar em relações mútuas vitais por meio de um terceiro elemento, ou de um elemento intermediário, a saber, a alma. Por um lado, a alma era considerada como imaterial e, por outro, como adaptada ao corpo. Na medida em que se adapta ao nous ou ao pneuma, era tida como imortal, mas Ana medida em que se relaciona com o corpo, como carnal e mortal. A mais conhecida, e também a mais crua forma de tricotomia, é a que toma o corpo como a parte material da natureza humana, a alma como o princípio da vida animal, e o espírito como o elemento humano racional, imortal e relacionado com Deus. A concepção tricotômica do homem recebeu considerável apoio dos “pais” da igreja grega ou Alexandrina dos primeiros séculos da era cristã. Encontra-se, embora nem sempre exatamente da mesma forma, em Clemente de Alexandria, Orígenes e Gregório de Nissa. Mas, depois que Apolinário a empregou de maneira ofensiva à perfeita humanidade de Jesus, foi ficando gradativamente desacreditada. Alguns dos “pais” gregos ainda aderiam a ela, apesar de explicitamente repudiada pro Atanásio e Teodoreto. Na igreja latina, os principais teólogos apoiavam, diversamente, a dupla divisão da natureza humana. Foi especificamente a psicologia de Agostinho que deu proeminência a este modo de ver. Durante a Idade Média, tornou-se objeto de crença comum. A Reforma não trouxe mudança alguma, quanto a isso, conquanto uns poucos luminares menores defendessem a teoria tricotômica. A Igreja Católica Romana aderiu ao veredicto do escolasticismo, mas nos círculos do protestantismo ouviram-se outras vozes. Durante o século dezenove a tricotomia foi revivida numa ou noutra forma por certos teólogos alemães e ingleses, como Roos, Olshausen, Beck, Delitzsch, Auberlen, Oehler, White e Heard; mas não encontrou muito apoio no mundo teológico. Os recentes advogados dessa teoria não concordam quanto à natureza da psyque, nem quanto à sua relação com os outros elementos da natureza humana. Delitzsch a concebe como uma exaltação do pneuma, enquanto que Beck, Oehler e Heard a consideram como o ponto de união entre o corpo e o espírito. Delitzsch não é bem coerente e ocasionalmente parece oscilar, e Beck e Oehler admitem que a descrição bíblica do homem é fundamentalmente dicotômica. Dificilmente se pode dizer que a sua defesa de uma tricotomia implica a existência de três elementos distintos no homem. Além dessas duas concepções teológicas, houve também, principalmente no último século e meio, os conceitos filosóficos do materialismo absoluto e do idealismo absoluto, aquele sacrificando a alma em favor do corpo, e este, o corpo em favor da alma. 2. OS ENSINAMENTOS DA ESCRITURA SOBRE OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA NATUREZA HUMANA. A exposição geral da natureza do homem na Escritura é claramente dicotômica. De um lado, a Bíblia nos ensina a ver a natureza do homem como uma unidade, e não como uma dualidade consistente de dois elementos diferentes, cada um dos quais movendo-se ao longo de linhas paralelas em realmente unir-se para formar um organismo único. A idéia de um simples paralelismo entre os dois elementos da natureza humana, encontrada na filosofia grega e também nas obras de alguns filósofos posteriores, é inteiramente alheia à Escritura. Embora reconhecendo a complexa natureza humana, ela nunca a expõe como redundando num duplo sujeito no homem. Cada ato do homem é visto como um ato do homem todo. Não é a alma, e sim, o homem, corpo e alma, que é redimido em Cristo. Esta unidade já acha expressão na passagem clássica do Velho Testamento – a primeira passagem a indicar a complexa natureza do homem – a saber, Gn 2.7: “Então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente”. A passagem toda trata do homem: “Formou o Senhor Deus ao homem... e o homem passou a ser alma vivente”. Esta obra realizada por Deus não deve ser interpretada como um processo mecânico, como se Ele tivesse formado primeiro o corpo do homem e depois tivesse posto nele uma alma. Quando Deus formou o corpo, formou-o d modo que, pelo sopro do Seu Espírito Santo, o homem se tornou imediatamente alma vivente, Jó 33.4; 32.8. A palavra “alma”, em Gn 2.7, não tem o sentido que geralmente lhe atribuímos – sentido deveras alheio ao Velho Testamento – mas denota um ser vivo, e é a descrição do homem completo. Exatamente a mesma expressão hebraica, nephesh hayyah (alma ou ser vivente) é aplicada também aos animais em Gn 1.21, 24, 30. Assim, esta passagem, embora indicando que há dois elementos no homem, dá ênfase, porém, a unidade orgânica do homem. Ao mesmo tempo, ela contém igualmente provas da composição dual da natureza. Contudo, devemos acautelar-nos quanto a esperar ver no Velho Testamento a distinção posterior entre o corpo, como o elemento material, e a alma, como o elemento espiritual da natureza humana. Esta distinção entrou em uso mais tarde, sob a influência da filosofia grega. A antítese – alma e corpo – mesmo em seu sentido neotestamentário, não se acha no velho testamento. De fato, o hebraico não tem uma palavra para o corpo como organismo. A distinção veterotestamentária dos dois elementos da natureza humana é de diferente espécie. Em sua obra sobre A Doutrina Bíblica do Homem, diz Laidlaw: “Vê-se com clareza que a antítese é entre o inferior e o superior, o terreno e o celeste, o animal e o divino. Não se trata tanto de dois elementos, mas de dois fatores que se unem, com uma resultante única e harmoniosa – ‘o homem passou a ser alma vivente’”. É evidente que é essa a distinção presente em Gn 2.7. Cf.também Jó 27.3; 32.8; 33.4; Ec 12.7. Várias palavras são empregadas no Velho Testamento para indicar o elemento inferior do homem ou partes dele, como “carne”, “pó”, “ossos”, “entranha”, “rins”, e também a expressão metafórica de Jó 4.19, “casas de barro”. Há também diversas palavras que indicam o elemento superior, como “espírito”, “alma”, “coração” e “mente”. Tão logo passamos do Velho para o Novo testamento, encontramos as expressões antitéticas com que estamos mais familiarizados, como “corpo e alma”, “carne e espírito”. As palavras gregas correspondentes foram, sem dúvida, moldadas pelo pensamento filosófico grego, mas passaram para o Novo testamento por intermédio da Septuaginta e, portanto, retiveram a sua ênfase veterotestamentária. Ao mesmo tempo, a idéia antitética do material e o imaterial atualmente se liga a elas. Os tricotomistas procuram suporte no fato de que a Bíblia, como eles a vêem, reconhece duas partes constitutivas da natureza humana em acréscimo ao elemento inferior ou material, a saber, a alma (hebraico, nephesh; grego, psyque) e o espírito (hebraico, ruah; grego, pneuma ). Mas o fato de serem empregados esses termos com grande freqüência na escritura não dá base para a conclusão de que designam partes componentes, em vez de aspectos diferentes da natureza humana. Um cuidadoso estudo da Escritura mostra claramente que ela emprega as palavras umas pelas outras, em permuta recíproca. Ambos os termos indicam o elemento superior ou espiritual do homem, vendo-o, porém, de diferentes pontos de vista. Contudo, é preciso mostrar logo de início que a distinção que a Escritura faz entre os dois não concorda com o que é mais comum na filosofia, de que a alma é o elemento espiritual do homem, conforme se relaciona com o mundo animal, enquanto que o espírito é aquele mesmo elemento em sua relação com o mundo espiritual superior, e com Deus. Os seguintes fatos militam contra essa distinção filosófica: Ruah-pneuma, bem como nephesh-psyque, são empregados com referência à criação animal inferior, Ec 3.21; Ap 16.3. A palavra psyque é empregada até com referencia a Jeová, Is 42.1; Jr 9.9; Am 6.8 (texto hebraico); Hb 10.38. Os mortos desencarnados são chamados psyqai,Ap 6.9; 20.4. Os mais elevados exercícios da religião são atribuídos à psyque, Mc 12.30; Lc 1.46; Hb 6.18, 19; Tg 1.21. Perder a psyque é perder tudo. É mais que evidente que a Bíblia emprega as duas palavras uma pela outra, permutando-as reciprocamente. Observa-se o paralelismo em Lc 1.46, 47: “A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador”. A fórmula escriturística para designar o homem é, nalgumas passagens, “corpo e alma”, Mt 6.25;* 10.28; e noutras, “corpo e espírito”,** Ec 12.7; 1 Co 5.3, 5. Às vezes a morte é descrita como a entrega da alma, Gn 35.18; 1 Rs 17.21; At 15.26;*** e também como a entrega do espírito, Sl 31.5; Lc 23.46; At 7.59. Além disso, tanto “alma” como “espírito”são empregados para designar o elemento imaterial do homem, 1 Pe 3.19; Hb 12.23; Ap 6.9; 20.4. A principal distinção feita pela Escritura é como segue: a palavra “espírito”designa o elemento espiritual do homem como o princípio de vida e ação que domina e dirige o corpo; ao passo que a palavra “alma” denomina o mesmo elemento como o sujeito da ação no homem e, portanto, muitas vezes é empregada em lugar do pronome pessoal no Velho Testamento, Sl 10.1, 2; 104.1; 146.1; Is 42.1; cf, também Lc 12.19. Em diversos casos, designa mais especificamente a vida interior como a sede dos sentimentos. Isso tudo está em completa harmonia com Gn 2.7, “o Senhor Deus...lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente”. Assim, pode dizer que o homem tem espírito, mas é alma. Portanto, a Bíblia indica dois, e somente dois, elementos constitutivos da natureza humana, a saber, corpo e espírito ou alma. Esta descrição escriturística harmoniza-se também com a consciência própria do homem. Enquanto que o homem tem consciência do fato de que consiste de um elemento material e de um elemento espiritual, nenhum homem tem consciência de possuir alma em distinção do espírito. Há, porém, duas passagens que parecem estar em conflito com a usual descrição dicotômica da escritura, a saber, 1 Ts 5.23, “O mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo, sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”; e Hb 4.12, “porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas e apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração”. Deve-se notar, porém, que: (a) É boa regra de exegese que as afirmações excepcionais sejam interpretadas à luz da analogia Scripturae, ou seja, da apresentação usual da Escritura. Em vista deste fato, alguns dos defensores da tricotomia admitem que essas passagens não provam necessariamente a posição deles. (b) A simples menção dos termos espírito e alma um ao lado do outro não prova que, segundo a escritura, são duas substâncias distintas, como também Mt 22.37 não prova que Jesus Considerava o coração, a alma e o entendimento como três substâncias distintas. (c) Em 1 Ts 5.23 o apóstolo deseja simplesmente fortalecer a afirmação: “O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo”, com uma declaração epizegética,**** na qual se resumem os diferentes aspectos da existência do homem, e na qual o apóstolo se sente perfeitamente livre para mencionar os termos alma e espírito um ao lado do outro, porque a Bíblia distingue entre ambos. Ele não poderia ter pensado na alma e no corpo como duas substâncias diferentes, porquanto noutros lugares da Escritura diz ele que o homem consiste de duas partes, Rm 8.10; 1 Co 5.5; 7.34; 2 Co 7.1; Ef 2.3; Cl 2.5. (d) Hb 4.12 não deve ser entendido no sentido de que a palavra de Deus, penetrando no íntimo do homem, faz separação entre a sua alma e o seu espírito, o que naturalmente implicaria que são dias substâncias diferentes; mas simplesmente no sentido de uma declaração de que ela produz uma separação entre os pensamentos e as intenções do coração. 3. RELAÇÃO MÚTUA DO CORPO E DA ALMA. A exata relação mútua do corpo e da alma tem sido exposta de várias maneiras, mas em grande medida continua sendo um mistério. As seguintes são as teorias mais importantes relativas a este ponto: a. Teorias monistas. São as que partem do pressuposto de que o corpo e a alma são da mesma substância primitiva. De acordo com o materialismo, essa substância primitiva é a matéria, e o espírito é um produto da matéria. E de acordo com o idealismo absoluto e com o espiritualismo, a substância primitiva é o espírito, e este se torna objetivo para si mesmo no que se chama matéria. A matéria é um produto do espírito. A objeção a esse conceito monista é que coisas tão diferentes como o corpo e a alma não podem ser extraídas uma da outra. b. Teoria dualistas. Algumas teorias partem do pressuposto de que existe uma dualidade essencial de matéria e espírito, e apresentam as suas relações mútuas de várias maneiras: (1) Ocasionalismo. Segundo esta teoria, sugerida por Cartésio, a matéria e o espírito operam cada um de acordo com leis peculiares a cada qual, e essas leis são tão diferentes que não há possibilidade de ação conjunta. O que se parece com isso só pode ser explicado com base no princípio de que, por ocasião da ação de um desses elementos, Deus, por Sua atividade direta, produz uma ação correspondente no outro. (2) Paralelismo. Leibnitz propôs a teoria da harmonia pré-estabelecida. Isto baseia-se também na pressuposição de que não há direta interação entre o material e o espiritual, mas não presume que Deus produz, o que é evidente, ações conjuntas mediante interferência contínua. Em vez disso, a teoria sustenta que Deus fez o corpo e a alma de modo tal, que um corresponde perfeitamente ao outro. Quando se dá um movimento no corpo, há um movimento correspondente na alma, de acordo com certa lei da harmonia pré-estabelecida. (3) Dualismo realista. Os fatos simples aos quais temos sempre que retornar e que estão incorporados na teoria do dualismo realista, são os seguintes: O corpo e a alma são substancias distintas, que de fato interagem, embora o seu modo de interação escape ao exame humano e continue sendo um mistério para nós. A união entre os dois elementos pode ser chamada união de vida: os dois se relacionam organicamente, a alma agindo sobre o corpo e o corpo sobre a alma. Algumas das ações do corpo são dependentes da operação consciente da alma, enquanto que outras não. As operações da alma estão ligadas ao corpo, como seu instrumento na vida presente; mas, a julgar pela continuidade da existência e da atividade conscientes da alma, pode-se concluir que ela pode agir sem o corpo. Este modo de ver certamente está em harmonia com as exposições bíblicas sobre este ponto. Grande parte da psicologia dos dias atuais está se movendo decididamente rumo ao materialismo. Sua modalidade mais extremista vê-se no behaviorismo, com a sua negação da alma, da mente e até mesmo da consciência. Tudo que essa corrente deixa como objeto de estudo é o comportamento humano. (Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 187)