segunda-feira, 29 de abril de 2013

A Doutrina de Cristo Depois da Reforma

1. ATÉ AO SÉCULO DEZENOVE. A Reforma não trouxe grandes mudanças à doutrina da pessoa de Cristo. Tanto a Igreja Romana como as igrejas da reforma subscreveram a doutrina de Cristo nos termos de sua formulação pelo Concílio de Calcedônia. Suas diferenças importantes e profundas estão noutras áreas. Há uma peculiaridade da cristologia luterana que merece atenção. A doutrina de Lutero sobre a presença física de Cristo na ceia do Senhor levou ao conceito caracteristicamente luterano da communicatio idiomatum (comunicação de propriedades), com o sentido de “que cada uma das naturezas de Cristo permeia a outra (perichoresis), e que a Sua humanidade participa dos atributos da Sua divindade”. Afirma-se que os atributos de onipotência , onisciência e onipresença foram comunicados à natureza humana de Cristo ao tempo da encarnação. Suscitou-se naturalmente a questão sobre como isto poderia harmonizar-se com o que sabemos da vida terrena de Jesus. Esta questão levou a uma diferença de opinião entre os teólogos luteranos. Alguns afirmam que Cristo pôs de lado os atributos divinos recebidos na encarnação, ou os usava só ocasionalmente, enquanto outros diziam que Ele continuou de posse deles durante toda a sua vida terrena, mas os manteve ocultos ou só os usava secretamente. Alguns luteranos atualmente parecem inclinados a rejeitar esta doutrina. Os teólogos reformados (calvinistas) viam nessa doutrina luterana uma espécie de eutiquianismo ou de fusão das duas naturezas de Cristo. A teologia reformada também ensina uma comunicação de atributos, mas a concebe de maneira diferente. Ela crê que, depois da encarnação, as propriedades de ambas as naturezas podem ser atribuídas à pessoa única de Cristo. Pode-se dizer que a pessoa de Cristo é onisciente, mas também, que tem conhecimento limitado; pode se considerada onipresente, mas também limitada, em qualquer tempo particular, a um único lugar. Daí, lemos na Segunda Confissão Helvética: “reconhecemos, pois, que há no único e mesmo Jesus, nosso Senhor, duas naturezas – a natureza divina e a humana; e dizemos que estas são ligadas ou unidas de modo tal, que não são absorvidas, confundidas ou misturadas, mas, antes, são unidas ou conjugadas numa pessoa (sendo que as propriedades de cada uma delas permanecem a salvo e intactas), de modo que podemos cultuar a um Cristo, nosso Senhor, e não a dois. Portanto, não pensamos nem ensinamos que a natureza divina em Cristo sofreu, ou que Cristo, de acordo com a Sua natureza humana, ainda está no mundo e ,assim, em todo lugar”. 2. NO SÉCULO DEZENOVE. No início do século dezenove deu-se grande mudança no estudo da pessoa de Cristo. Até àquele tempo, o ponto de partida fora predominantemente teológico, e a cristologia resultante era teocêntrica; mas durante a última parte do século dezoito houve crescente convicção de que se alcançariam melhores resultados partindo de algo mais próximo, a saber do estudo do Jesus histórico. Assim foi introduzido o “segundo período cristológico”, assim chamado. O novo ponto de vista era antropológico, e o resultado foi antropocêntrico. Isto evidenciou-se destrutivo para a fé cristã. Uma distinção de maior alcance e perniciosa foi feita entre o Jesus histórico, delineado pelos escritores dos evangelhos, e o Cristo teológico, fruto da fértil imaginação dos pensadores teológicos, e cuja imagem reflete-se agora nos credos da igreja. O Cristo sobrenatural abriu alas para um Jesus humano; e a doutrina das duas naturezas abriu alas para a doutrina de um homem divino. Scheleiermacher esteve à testa do novo desenvolvimento. Ele considerava Cristo como uma nova criação, na qual a natureza humana é elevada ao nível da perfeição ideal. Todavia, dificilmente se pode dizer que o seu Cristo se eleva acima do nível humano. A singularidade da Sua pessoa consiste do fato de que Ele possui um perfeito e vívido senso de união com o divino, e também realiza com plenitude o destino do homem em Seu caráter de perfeição impecável. A sua suprema dignidade encontra a sua explicação numa presença especial de Deus nele, em Sua consciência singular de Deus. O conceito que Hegel tinha de Cristo é parte integrante do seu sistema panteísta de pensamento. O verbo se fez carne significa para ele que Deus se encarnou na humanidade, de modo que a encarnação expressa realmente a unidade de Deus e o homem. Ao que parece, a encarnação foi meramente o auge de um processo racial. Enquanto a humanidade em geral considera Jesus unicamente como um mestre humano, a fé O reconhece como divino e vê que, por Sua vinda ao mundo, a transcendência de Deus torna-se imanência. Encontramos aqui uma identificação panteísta do humano e do divino na doutrina de Cristo. Algo disto se vê nas teorias quenósticas, que representam uma notável tentativa de melhorar a elaboração da doutrina da pessoa de Cristo. O termo kénosis é derivado de Fp 2.7, que ensina que Cristo “se esvaziou (ekenosen), assumindo a forma de servo”. Os quenosicistas tomam isso no sentido de que o Logos tornou-se, isto é, transformou-se literalmente num homem, reduzindo-se total ou parcialmente às dimensões de um homem, e depois cresceu em sabedoria e poder, até que afinal se tornou Deus de novo. Essa teoria apareceu em várias formas, das quais a mais categórica é a de Gess, e por algum tempo gozou considerável popularidade. Propunha-se manter a realidade e a integridade da humanidade de Cristo, e dar vivo relevo à grandiosidade da Sua humilhação, na qual Ele, sendo rico, fez-se pobre por nós. Contudo, ela envolve uma obliteração panteísta da linha de demarcação entre Deus e o homem. Dorner, que foi o maior representante da Escola Mediadora, opôs-se fortemente a esse conceito e o substituiu pela doutrina de uma encarnação progressiva. Ele via na humanidade de Cristo uma nova humanidade com especial receptividade para com o divino. O Logos, o princípio de auto-concessão de Deus, juntou-se a essa humanidade; a medida em que o fez foi determinada em cada estágio pela sempre crescente receptividade da natureza humana para com o divino, e não alcançou o seu estágio final até à ressurreição. Mas isto não passa de uma nova e sutil forma de heresia nestoriana. Resulta num Cristo que consiste de duas pessoas. Com a exceção de Schleiermacher, ninguém exerceu maior influencia sobre a teologia contemporânea do que Albrecht Ritschl. Sua cristologia tem seu ponto de partida na obra de Cristo, e não em Sua pessoa. A obra de Cristo determina a dignidade de Sua pessoa. Ele era mero homem, mas em vista da obra que realizou e do serviço que prestou, acertadamente Lhe atribuímos os predicados da Divindade. Ritschl rejeita a preexistência, a encarnação e a concepção virginal de Cristo, visto que isso não acha nenhum ponto de contato na consciência crente da comunidade cristã. Cristo foi o fundador do reino de Deus, e agora, de algum modo, induz os homens a ingressarem na comunidade cristã e a terem uma vida motivada pelo amor. Ele redime o homem por Seu ensino, por Seu exemplo e por Sua única, e, portanto, é digno de ser chamado Deus. Este conceito é virtualmente um restabelecimento da doutrina de Paulo de Samosata. Com base na idéia panteísta moderna da imanência de Deus, a doutrina de Cristo hoje em dia é muitas vezes exposta de maneira completamente naturalista. As exposições podem variar muito, mas geralmente a idéia fundamental é a mesma, a saber, a idéia de uma unidade essencial de Deus e o homem. A doutrina das duas naturezas de Cristo desapareceu da teologia moderna e em seu lugar temos uma identificação panteísta de Deus e o homem. Essencialmente, todos os homens são divinos, desde que todos têm em si um elemento divino; e todos são filhos de Deus, diferindo de Cristo somente em grau. O ensino moderno acerca de Cristo está baseado na doutrina da continuidade de Deus e o homem. E é exatamente contra essa doutrina que Barth e os que pensam como ele ergueram sua voz. Nalguns círculos atuais há sinais de um retorno à doutrina das duas naturezas. Em sua obra intitulada, What Is the Faith? (Que é Fé?), Mickelm confessa que durante muitos anos afirmou confiantemente que atribuição a Cristo de duas naturezas numa pessoa tinha que ser abandonada, mas agora Vê que isto se firmava num mal-entendido. QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. Qual o cenário de fundo da controvérsia cristológica dos primeiros séculos da era cristã? 2. Que erros antigos foram revividos por Roscelino e Abelardo? 3. Qual foi o niilismo cristológico em voga entre os discípulos de Abelardo? 4, Que conceito Pedro Lombardo tinha de Cristo? 5. Os escolásticos trouxeram algum novo ponto ao palco? 6. Onde encontramos a cristologia luterana oficial? 7. Como podemos explicar as descrições aparentemente incoerentes da Fórmula de Concórdia? 8. Que objeções há ao conceito luterano de que se pode afirmar que os atributos divinos qualificam também a natureza humana? 9. Como os luteranos e os reformados (calvinistas) diferem na interpretação de Fp 2.5-11? 10. Como difere a cristologia reformada da luterana? 11. Qual a principal diferença entre a cristologia recente e a mais antiga? 12. Quais as objeções à doutrina quenósica? 13. Quais as características objetáveis da cristologia moderna? 14. Qual o conceito de Barth e Brunner sobre Cristo? BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: The Formula of Concord and the Second Helvetic Confession; Seeberg, History of Doctrine II, p. 65, 109, 110, 154, 155, 229, 230, 321-324, 374, 387; Hagenbach, History of Doctrine II, p. 267-275; III, p. 197-209, 343-353; Thomasius, Dogmengeschichte II, p. 380-385; 388-429; Otten, manual of the History of Dogmas II, p. 171-195; Heppe, Dogmatik des deutschen Protestantismus II, p. 78-178; Dorner, History of Protestant Theology, p. 95,96, 201, 202, 322, 323; Bruce, The Humiliation of Chris, p. 74- 355; Mackintosh, The doctrine of the Person of Jesus Christ,p. 223-284; Ottley, The Doctrine of the Incarnation, p. 485-553, 587-671; Sanday, Christologies Ancient and Modern, p. 59-83; Schweitzer, The Quest of the Historical Jesus; La Touche, The Person of Chirst in Modern Thougth. (Teologia Sistemática – L. Berkhof. Pg 304)