terça-feira, 1 de outubro de 2013

O FIM ÚLTIMO DE DEUS NA CRIAÇÃO

Tem-se debatido com freqüência a questão do fim último de Deus na obra da criação. No transcurso da história, a questão recebeu especialmente uma resposta dupla. a. A felicidade do homem ou da humanidade. Alguns dos antigos filósofos, como Platão, Filo e Sêneca, afirmavam que a bondade de Deus O induziu a criar o mundo. Ele desejava comunicar-se com as Suas criaturas: a felicidade destas era o fim que Ele tinha em vista. Embora alguns teólogos cristãos tenham estado em harmonia com essa idéia, ela se tornou proeminente principalmente através do humanismo do período da Reforma e do racionalismo do século dezoito. Muitas vezes essa teoria foi apresentada de maneira muito superficial. A melhor forma em que é exposta traz a noção de que Deus não poderia fazer-se a Si próprio o fim da criação, porquanto Ele é suficiente para Si mesmo e não poderia ter necessidade de coisa alguma. E se Ele não poderia fazer-se a Si próprio o fim, então este só pode ser encontrado na criatura, especialmente no homem, e, finalmente, em sua suprema felicidade. O conceito teleológico segundo o qual o bem-estar ou a felicidade do homem ou da humanidade constitui o fim último da criação, caracterizou o pensamento de homens influentes como Kant, Schleiermacher e Ritschl, conquanto não apresentem todos do mesmo modo. Mas essa teoria não satisfaz, por várias razões: (1) É indubitável que Deus revela a Sua bondade na criação; contudo, não é correto dizer que a Sua bondade ou o Seu amor não poderia expressar-se, se o mundo não existisse. As relações pessoais dentro da Trindade propiciavam todo o necessário para uma plena e eterna vida de amor. (2) parece perfeitamente evidente que Deus não existe por causa do homem, mas sim, o homem por causa de Deus. Somente Deus é o Criador e o Sumo Bem, ao passo que o homem é apenas uma criatura que, por esta mesma razão, não pode ser o fim da criação. O temporal encontra a sua finalidade no eterno, o humano no divino, e não vice-versa. (3) A teoria não se coaduna com os fatos. É impossível subordinar tudo que se acha na criação a esse fim, e explicar tudo em relação com a felicidade humana. Evidencia-o perfeitamente a consideração de todos os sofrimentos que há no mundo. b. A glória declarativa de Deus. A igreja de Jesus Cristo encontrou o verdadeiro fim da criação, não em alguma coisa que esteja fora de Deus, mas em Deus mesmo, mais particularmente na manifestação externa da Sua excelência inerente. Não significa que receber Deus glória da parte de outros seja o fim último. O recebimento de glória por meio de louvores prestados por Suas criaturas morais é um fim que está incluído no fim supremo, mas não constitui em si mesmo esse fim. Deus não criou primeiramente para receber glória, mas para tornar a Sua glória saliente e manifesta. As gloriosas perfeições de Deus são demonstradas em toda a Sua criação; e esta demonstração não é para uma vã mostra, para uma exibição para ser meramente admirada pelas criaturas, mas visa também à promoção do sue bem-estar e da sua perfeita felicidade. Além disso, procura afinar os seus corações para os louvores do Criador, e para arrancar das suas almas expressões da sua gratidão, do seu amor e da sua adoração. O fim supremo de Deus na criação – a manifestação da Sua glória – inclui, pois, como fins subordinados, a felicidade e salvação da Suas criaturas, e o recebimento de louvor de corações agradecidos e desejosos de adora-lo. Esta doutrina tem suporte nas seguintes considerações: (1) Baseia-se no testemunho da Escritura, Is 43.7; 60.21; 61.3; Ez 36.21, 22; 39.7; Lc 2.14; Rm 9.17; 11.36; 1 Co 15.28; Ef 1.5, 6, 9, 12, 14; 3.9, 10; Cl 1.16. (2) Dificilmente o Deus infinito escolheria alguma coisa inferior ao fim supremo em toda a criação, e esse fim se pode achar nele mesmo. Se nações inteiras, comparadas com Ele, não passam de uma gota num balde, e são como o pó da balança, então, certamente, a Sua glória declarativa é intrinsecamente de muito maior valor que o bem de Suas criaturas, Is 40.15, 16. (3) A glória de Deus é o único fim coerente com a Sua independência e soberania. Cada qual depende de quem ou do que ele escolhe como o seu fim último. Se Deus escolhesse algo da criatura como o Seu fim é ultimo, isto O tornaria dependente da criatura naquela medida. (4) Nenhum outro fim seria suficientemente compreensivo para constituir o verdadeiro fim de todos os caminhos e obras de Deus na criação. Esse tem a vantagem de abranger, como subordinados, vários outros fins. (5) Esse é o único fim real e perfeitamente alcançado no universo. Não podemos imaginar que um Deus sábio e onipotente escolhesse um fim destinado a falhar no todo ou em parte, Jó 23.13. Não obstante, muitas das Suas criaturas nunca alcançam felicidade perfeita. c. Objeções à doutrina de que a glória de Deus é o fim da criação. Eis as mais importantes: (1) faz do plano do universo um plano egoísta. Mas devemos distinguir entre egoísmo e razoável consideração própria ou amor próprio. Aquele é uma indevida ou exclusiva atenção ao conforto ou prazer próprio, sem consideração pela felicidade ou pelos direitos dos outros; este é a devida atenção à própria felicidade e ao próprio bem-estar, perfeitamente compatível com a justiça, a generosidade e a benevolência para com os demais. Ao procurar expressar-se para a glória do Seu nome, Deus não desconsiderou o bem-estar, o bem supremo dos outros; antes o promoveu. Além disso, essa objeção rebaixa o Deus infinito ao nível do homem finito, sim, mesmo do homem pecador, e O julga pelos padrões humanos, o que não tem base nenhuma. Deus não tem igual, e ninguém pode reivindicar nenhum direito contra Ele. Ao fazer da Sua glória declarativa o fim da criação, Ele escolheu o fim supremo; mas quando o homem faz de si mesmo o fim de todas as suas obras, não está escolhendo o fim supremo. Ele se alçaria a um nível mais elevado, se escolhesse o bem-estar da humanidade e a glória de Deus como a finalidade da sua vida. Finalmente, esta objeção é feita primariamente em vista do fato de que o mundo está cheio de sofrimentos, e de que há criaturas racionais de Deus que estão fadadas à destruição eterna. Mas isso não se deve à obra criadora de Deus, e, sim, ao pecado do homem, que estorvou a obra de Deus na criação. O fato de que o homem sofre as conseqüências do seu pecado e da sua insurreição não dá direito a ninguém para acusar Deus de egoísmo. Poder-se-ia também acusar o governo de egoísmo por preservar a sua dignidade e a majestade da lei contra todos os que a transgridem voluntariamente. (2) É contrária à auto-suficiência e independência de Deus. Procurar Deus a Sua honra desse modo mostra que Ele necessita da criatura. O mundo foi criado para glorificar a Deus, isto é, para acrescentar glória à Sua glória. Então, evidentemente, a Sua perfeição é carente em alguns aspectos: a obra da criação satisfaz uma carência e contribui para a perfeição divina. Mas esta explicação não é correta. O fato de que Deus criou o mundo para a Sua glória não significa que Ele precisava do mundo. Entre os homens, e isso universalmente, não se pode afirmar que a obra que eles realizam em favor de outros é necessária àqueles, para suprir-lhes alguma carência. Pode-se dizer isso quanto ao trabalhador comum, que trabalha pelo pão de cada dia, mas dificilmente será verdade quanto ao artista, que segue o impulso espontâneo do seu gênio. Do mesmo modo, há uma satisfação veraz e boa em Deus – Seu beneplácito – que se acha muito acima de qualquer necessidade e compulsão, e que encarna artisticamente os Seus pensamentos na criação e neles tem prazer. Além disso, não é certo que, quando Deus fez da Sua glória declarativa o fim último da criação, teve por objetivo principal o recebimento de alguma coisa. A suprema finalidade que Ele teve em vista não foi a de receber glória, mas, sim, a de manifestar nas obras das Suas mãos a Sua glória, e o firmamento mostrar as obras das Suas mãos, as aves dos céus e os animais do campo engrandece-lo, e os filhos dos homens entoar-lhe louvores. Mas, ao glorificarem o Criador, as criaturas nada acrescentam à perfeição do Seu Ser, mas apenas reconhecem a Sua grandeza e lhe atribuem a glória que lhe é devida. (Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 130)