quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Objeções à Doutrina dos Decretos

Como foi dito acima, somente a teologia reformada (calvinista) faz plena justiça à doutrina dos decretos. Em regra, os teólogos luteranos não a elaboram teologicamente, mas, sim, soteriologicamente, com o propósito de mostrar como os crentes podem auferir consolação dela. Os pelagianos e os socinianos a rejeitam, alegando que é antibíblica; os semipelagianos e os arminianos não mostram para com ela quase nenhum favor: uns a ignoram totalmente; outros a expõem somente para combatê-la; e ainda outros defendem apenas um decreto condicionado pela presciência de Deus. As objeções levantadas são, no essencial, sempre as mesmas. 1. É INCOERENTE COM A LIBERDADE MORAL DO HOMEM. O homem é um agente livre, com capacidade de autodeterminação racional. Ele pode refletir sobre uma inteligente escolha de certos fins, e também pode determinar sua ação com respeito a eles. Contudo, o decreto leva necessidade consigo. Deus decretou realizar todas as coisas, ou, se não as decretou, ao menos determinou que isso viesse a acontecer. Ele decidiu qual o curso da vida do homem por meio disso. Em resposta a esta objeção, pode-se dizer que a Bíblia certamente não parte da suposição de que o decreto divino é incoerente com a livre ação de homem. Ela revela claramente que Deus decretou os atos livres do homem, mas também que os seus fatores não são menos livres e, portanto, responsáveis por seus atos, Gn 50.19, 20; At 2.23; 4.27, 28. Foi determinado que os judeus levassem a efeito a crucificação de Jesus; todavia, foram perfeitamente livres em seu procedimento, e foram responsabilizados por este crime. Não há nem uma só indicação na Escritura de que os escritores vêem alguma contradição quanto a esses pontos. Eles jamais procuram harmonizar ambos. Isto bem poderia levar-nos a conter-nos, não supondo uma contradição aqui, mesmo que não consigamos conciliar as duas verdades. Além disso, deve-se em mente que Deus não decretou realizar por Sua ação pessoal e direta o que quer que venha a acontecer. O decreto divino só dá certeza aos eventos, mas não implica que Deus os realizará ativamente, de modo que a questão se reduz a isto: se a certeza prévia se coaduna com a livre ação. Ora, a experiência nos ensina que podemos estar razoavelmente certos quanto ao curso de ação que alguém que conhecemos seguira, sem infringir em nada a sua liberdade. O profeta Jeremias predisse que os caldeus tomariam Jerusalém. Para ele, o evento por vir era uma certeza e, contudo, os caldeus seguiram livremente os seus desejos ao cumprirem a predição. Essa certeza é, na verdade, incoerente com a liberdade da indiferença, no conceito pelagiano, segundo o qual a vontade do homem não é determinada de modo algum, mas é inteiramente indeterminada, de sorte que, em cada volição, ela pode decidir, não somente face a toda indução externa, mas também a todos os desejos, inclinações, julgamentos e considerações internos, e mesmo a todo o caráter e estado interior do homem. Mas agora se reconhece em geral que tal liberdade da vontade é uma ficção psicológica. Todavia, o decreto não é necessariamente incoerente com a liberdade humana no sentido de autodeterminação racional, segundo a qual o homem age livremente em harmonia com os seus pensamentos e julgamentos anteriores, suas inclinações e desejos, e com todo o seu caráter. Esta liberdade também tem suas leis, e quanto mais familiarizados estivermos com elas, mais seguros poderemos estar do que um agente livre fará em certas circunstâncias. Foi Deus que estabeleceu essas leis. Naturalmente, devemos precaver-nos contra todo determinismo - materialista, panteísta e racionalista – em nossa concepção da liberdade no sentido de autodeterminação racional. O decreto não é mais incoerente com a livre ação que a presciência e, contudo, os seus oponentes, que geralmente são dos tipos semipelagiano e arminiano, professam a fé na presciência divina. Por Sua presciência Deus conhece desde toda a eternidade a futurição certa de todos os eventos. Ela está baseada em Sua predeterminação, pela qual Deus determinou a certeza futura deles. Naturalmente, o arminiano dirá que não acredita numa presciência baseada num decreto que torna certas todas as coisas, mas numa presciência de fatos e eventos contingentes, que dependem do livre arbítrio do homem e, portanto, são indeterminados. Pois bem, tal presciência das livres ações do homem é possível, se o homem, mesmo com a sua liberdade, age em harmonia com as leis divinamente estabelecidas, o que de novo introduz o elemento de certeza; mas, ao que parece, é impossível conhecer antecipadamente eventos que dependem por completo da decisão casual de uma vontade alheia a principio que podem em qualquer ocasião, independentemente do estado de espírito, das condições existentes, e dos motivos que se apresentam à mente, seguir diferentes direções. Eventos dessa natureza só podem ser conhecidos previamente como puras possibilidades. 2. O DECRETO ELIMINA TODOS OS MOTIVOS PARA ESFORÇO. Esta objeção tem que ver com aquelas pessoas que dizem com naturalidade que, se todas as coisas têm que acontecer como Deus as determinou, elas não necessitam preocupar-se com o futuro e não precisam fazer nenhum esforço para obter a salvação. Mas isso não está certo. No caso das pessoas que falam desse modo, geralmente a coisa não passa de mera desculpa para indolência e desobediência. Os decretos divinos não são dirigidos aos homens como uma regra de ação, e não podem constituir uma regra assim, visto que o conteúdo deles só se torna conhecido pela sua concretização, e depois desta. Há, porem, uma regra de ação incorporada na Lei e no Evangelho, e essa regra dá aos homens a obrigação de empregar os meios que Deus ordenou. Esta objeção também ignora a relação lógica, determinada pelo decreto de Deus, entre os meios e o fim a ser obtido. O decreto inclui não somente os diversos fatos da vida humana, mas também as livres ações humanas, logicamente anteriores aos resultados e destinadas a produzi-los. Era absolutamente certo que os que estavam no navio com Paulo (At 27) seriam salvos,mas era igualmente certo que, para assegurar este fim, os marinheiros tinham que permanecer a bordo. E desde que o decreto estabeleceu uma interrelação entre os meios e os fins, os fins são decretados somente como resultados dos meios, o decreto incentiva esforço, em vez de desestimula-lo. A firme crença no fato de que, segundo o decreto divino, o sucesso será a recompensa do labor, estimula esforços corajosos e perseverantes. Com base direta no decreto, a Escritura nos concita a utilizar diligentemente os meios designados, Fp 2.13; Ef 2.10. 3. O DECRETO FAZ DE DEUS O AUTOR DO PECADO. Esta, se fosse verdadeira, seria naturalmente uma objeção insuperável, pois Deus não pode ser o autor do pecado. Isto se infere igualmente na Escritura, Sl 92.15; Ec 7.29; Tg 1.13; 1 Jo 1.5, da lei de Deus que proíbe todo pecado, e da santidade de Deus. Mas a acusação não é verdadeira; o decreto simplesmente faz de Deus o Autor de seres morais livres, eles próprios os autores do pecado. Deus decreta sustentar a livre agencia deles, regular as circunstâncias da sua vida, e permitir que a livre agencia seja exercida numa multidão de atos, dos quais alguns são pecaminosos. Por boas e santas razões, Ele dá certeza ao acontecimento desses atos, mas não decreta acionar efetivamente esses maus desejos ou más escolhas no homem. O decreto concernente ao pecado não é um decreto efetivo mas permissivo, ou seja, um decreto para permitir o pecado, em distinção de um decreto para produzir o pecado sendo Deus a sua causa eficiente. Não há dificuldade ligada ao decreto que não se ligue a uma simples permissão passiva daquilo que Ele poderia muito bem impedir, como os arminianos, que geralmente levantam essa objeção, supõem. O problema da relação de Deus com o pecado continua sendo um mistério para nos, mistério que não somos capazes de resolver. Pode-se dizer, porem, que o Seu decreto para permitir o pecado, embora as segure a entrada do pecado no mundo, não significa que Ele tem prazer nele; significa somente que Ele considerou sábio, com o propósito da Sua auto-revelação, permitir o mal moral, por mais detestável que seja à Sua natureza. (Teologia Sistemática - Louis Berkhof. Pg. 100)